Em decisão de março de 2021, proferida em julgamento de um mandado de segurança, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo autorizou uma farmácia de manipulação operar com medicamentos derivados da Cannabis.
O acórdão tem como fundamento o direito à saúde, expressamente previsto no artigo 196 da Constituição Federal, como sendo dever do Estado, a ser garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Além disso, a decisão judicial também ressalta a inadmissível distinção de tratamento entre farmácias com manipulação e farmácias sem manipulação, criada pela ANVISA por meio da Resolução da Diretoria Colegiada nº 327/2019, por extrapolar o poder regulamentar, limitado, consequentemente, o livre exercício das atividades econômicas.
Como já foi dito em postagem anterior, com a facilitação do acesso à Justiça, a judicialização de temas relacionados à saúde está crescendo, por meio de demandas que objetivam internações, leitos, reparação por erros médicos, fornecimento de órteses e medicamentos, inclusive os de alto custo.
Paralelamente, nos últimos anos, o número de pesquisas relacionados ao uso do Canabidiol (CBD), para fins medicinais, também aumentou.
No Brasil, podemos citar que a USP[1] e a UNICAMP[2] têm realizado pesquisas sobre o uso da cannabis e dos seus derivados para finalidade terapêutica, em especial, o uso do canabidiol.
Além disso, diante da necessidade de obter licitamente material para as pesquisas, algumas universidades conseguiram autorização para o plantio de maconha, como a Universidade Federal de Viçosa e a UFRJ[3].
Segundo matéria publicada na Revista Globo Rural[4], as “pesquisas nas duas escolas [UFV e UFRJ] vão permitir o cultivo de variedades chamadas genericamente de cânhamo ou cannabis industrial. Essas plantas têm menos de 0,3% de tetra-hidrocanabinol (THC), componente psicotrópico presente nas flores da planta. São variedades que ‘não dão barato’ por isso não interessam ao mercado ilegal”.
O canabidiol (CBD) é uma das várias substâncias encontradas na maconha (chamadas de canabinoides) que agem no sistema nervoso central. Ao contrário do que o senso comum imagina, o CBD não possui efeito psicoativo, ou seja, não tem a capacidade de causar euforia ou qualquer sensação entorpecente.
O avanço das pesquisas, por sua vez, chamou atenção da ANVISA, a qual passou a regulamentar o tema, por meio das Resoluções da Diretoria Colegiada (RDC) nºs 17, 327 e 335, publicadas sequencialmente.
De forma resumida, a RDC nº 17/2015 define os critérios e os procedimentos para a importação, em caráter de excepcionalidade, de produto à base de Canabidiol em associação com outros canabinóides, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde.
Nesse passo, após consulta pública, por meio da RDC nº 327/2019, a ANVISA autorizou a fabricação e a importação de produtos de Cannabis, excluindo, assim, a regulamentação do plantio do respectivo vegetal.
Por último, a ANVISA publicou a RDC nº 335/2020, a qual define os critérios e os procedimentos para a importação de Produto derivado de Cannabis, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde.
Judicialização medicamentos com canabidiol
Em linhas gerais, o tratamento com canabidiol não é financeiramente acessível a grande parte da população brasileira. Isso porque o custo do tratamento, a depender da necessidade e da prescrição médica, pode variar entre R$ 500,00 e R$ 3.000,00 mensais, circunstância que causou o início da judicialização de medicamentos à base do canabidiol.
Diante do cenário acima, em especial do alto custo dos medicamentos que contém canabidiol, hoje é possível encontrar ações judiciais que buscam o fornecimento desses remédios ajuizadas contra a União, Estados e Municípios e, também, contra operadoras de planos de saúde.
As demandas judiciais que versam sobre o tratamento com produto à base de CBD ainda são raras, mas vêm ganhando espaço com o passar do tempo[5], especialmente após as mencionadas regulamentações da ANVISA.
No tocante à decisão objeto deste texto, por meio da qual foi autorizado que uma farmácia de manipulação operasse medicamentos com base de canabidiol, a i. Desembargadora Relatora, Maria Olívia Alves, destacou que:
“verifica-se que, de fato, tanto a farmácia com manipulação, quanto a farmácia sem manipulação, estão autorizadas a realizar o comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, inclusive a dispensação, sendo que a farmácia sem manipulação é a que possui maior limitação, no sentido de que somente pode realizar tal comércio nas embalagens originais, enquanto as farmácias de manipulação podem, além disso, manipular fórmulas magistrais e oficinais
‘Sendo assim, mesmo sob o pretexto do exercício do Poder de Polícia, verifica-se que o teor da RCD nº 327/2019 da ANVISA, ao vedar a manipulação e dispensação dos produtos de Cannabis por farmácias de manipulação e, assim, permitir que somente as farmácias sem manipulação/drogarias possam comercializá-los, está em desacordo com a Leis Federais Lei nº 5.991/73 e Lei nº 13.021/2014, que tratam especificamente das atividades permitidas às farmácias com e sem manipulação, e que não preveem a modalidade de restrição em questão.
‘A referida Resolução, portanto, acabou por criar entre as farmácias com manipulação e as farmácias sem manipulação distinção não amparada em lei, e, assim, extrapolou sua função meramente regulamentar ao inovar e limitar o livre exercício das atividades econômicas da impetrante, o que não se admite”.
Processo n. 1013079-49.2020.8.26.0577.
O acórdão acima abre o caminho para futuras demandas, mas, é bom lembrar que ainda não se trata de decisão definitiva, pois ainda cabe recurso.
Portanto, embora o uso do canabidiol, para fins medicinais, esteja ganhando espaço nos tribunais brasileiros, especialmente no que diz respeito à judicialização da saúde, ainda é tema considerado controverso, não pacificado pela jurisprudência, demandando cuidado e orientação profissional.
Por fim, antes de qualquer medida, converse sempre com um médico e/ou advogado de confiança sobre o assunto, pois o descumprimento da legislação nacional pode acarretar sanções penais e administrativas.
Disclaimer: Este autor não recomenda, em hipótese alguma, o cultivo ou manipulação da Cannabis Sativa L, nem mesmo para a extração do “CBD”, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, pois tal conduta configura crime, punido com reclusão.
Além disso, o uso/comércio de drogas, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, é crime e, a depender das circunstâncias do caso concreto, pode configurar o delito de tráfico de drogas, o qual prevê penas de até 15 anos de reclusão.
[1] USP tem a maior produção científica mundial sobre canabidiol. Disponível em: https://jornal.usp.br/ciencias/usp-tem-a-maior-producao-cientifica-mundial-sobre-canabidiol/ – Acesso em 15.11.2020.
[2] Unicamp e Entourage Phytolab firmam parceria de pesquisa sobre cannabis para uso medicinal. Disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2020/01/24/unicampe-entourage-phytolab-firmam-parceria-de-pesquisa-sobre-cannabis-para – Acesso em 10.09.2020.
[3]https://revistagloborural-globo com.cdn.ampproject.org/c/s/revistagloborural.globo.com/amp/Noticias/Pesquisa-e-Tecnologia/noticia/2020/11/universidades-federais-plantam-maconha-com-aval-da-justica-para-estudos-ineditos-no-brasil.html – Acesso em 29.11.2020.
[4] Universidades federais plantam maconha com aval da Justiça para estudos inéditos no Brasil. Disponível em https://revistagloborural-globo-com.cdn.ampproject.org/c/s/revistagloborural.globo.com/amp/Noticias/Pesquisa-e-Tecnologia/noticia/2020/11/universidades-federais-plantam-maconha-com-aval-da-justica-para-estudos-ineditos-no-brasil.html. Acesso em 29.11.2020.
[5] https://valor.globo.com/empresas/noticia/2019/10/06/aes-judiciais-para-acesso-cannabis-crescem-1750-pontos-percentuais-em-quatro-anos-em-so-paulo.ghtml